Pipoca, o menino que voava: a história de mestre Zênio

O presente artigo tem a finalidade refletir sobre a contribuição histórico cultural de mestre Zênio, como também sua participação na formatação da resistência negra na cidade de Itapetinga.

A capoeira surgiu no Brasil, como uma forma de resistência dos escravos trazidos da África na época colonial. Além de ser utilizada para defesa física, a capoeira foi uma forma de resguardar a identidade dos povos escravizados africanos. Principalmente porque ela se consolidou no Quilombo dos Palmares. Passou aí a ser vista como uma prática violenta. Por isso mesmo, a capoeira foi proibida por um longo período, precisamente até 1930, quando mestre Bimba fez uma apresentação da luta para o então presidente Getúlio Vargas, que a transformou em esporte nacional brasileiro.

 

Na passagem entre as décadas de 70 e 80 do século XX, havia no mundo Brasileiro um movimento pela esportização, promovido em parte pelo sucesso do futebol da seleção de Pelé, Tostão, Rivelino, Carlos Alberto Torres, entre outros. Em 1970, no México, com uma equipe formada por excelentes jogadores, o Brasil tornou-se, pela terceira vez, Campeão do Mundo ao vencer a Itália por 4×1. Ao tornar-se Tricampeão o Brasil ganhou o direito de ficar em definitivo com a posse da taça Jules Rimet fato épico para o orgulho nacional. Em Itapetinga esse movimento foi respaldado pelo prefeito José Vaz Sampaio Espinheira, que entre muitas tantas coisas quis formar uma geração olímpica e esportiva na cidade. No estádio de esportes foi criada a escola olímpica e seria a sede de tal empreendimento e o protagonista seria um Jovem negro soteropolitano de 19 anos, magro, porém musculoso de aproximadamente 1,55 de altura, o Mestre Zênio.

Pipoca, como era conhecido em Salvador, aprendeu capoeira jovem menino nas rodas, aluno de mestre Suassuna (o cordão de ouro) que dizem ser filho na capoeira de mestre Bimba, também foi feito no jogo, na mandinga, nos áres rebeldes das maltas, na resistência de angola, na proteção do berimbau, no toque visceral do atabaque, nos floreios sedutores para o público acostumado a o aplaudir. Temido por sua capoeira eficaz, violenta, carniceira, do bater e cair, era também admirado por sua capacidade de saltar pipocando, de voar. E esse foi o atributo que o trouxe, no final da década de 70, para Itapetinga trazido pelo então prefeito José Vaz Sampaio Espinheira.

Em visita a Salvador, Espinheira em passeio pelo pelourinho, foi pego pelos grandiosos saltos de um jovem de figura altiva e um tanto desaforada. Saltos que lembravam o dos atletas olímpicos. Seus saltos figuravam no comercial da TV Aratu. Conversou com o tio de Zênio, professor Santa Rosa, que já estava estabelecido no projeto olímpico da cidade e ficou tudo acertado. Aquele jovem saltador viria morar em Itapetinga, teria emprego e salário público, iria ensinar aos jovens Itapetinguenses a voar.

Já em Itapetinga sua primeira morada foi no Hotel Marabá. Tinha encontros todos os dias no Centro Olímpico onde tirava seus saltos e ensinava, de sua forma pouco ortodoxa, aos que tinham a ousadia de aprender como um homem pode voar. Todas as ocasiões públicas lá estava ele, professor Zênio e seus saltos fantásticos. Saltava pessoas enfileiradas, saltava, caia, tirava um flip e tornava saltar como se isso fosse natural, assim como é natural para um pássaro planar. O salto flip tornou-se sua marca e toda molecada queria aprender. As acrobacias não ficavam apenas em saltos. Era toda espécie de piruetas, com obstáculos, com fogo, com pregos, com vidro e tudo muito natural para ele executar. Era um verdadeiro fenômeno o que aquele ser era capaz de fazer. Muitos diziam que era poder mental.

No entanto, a capoeiragem de Zênio era dura. Seu primeiro local de ensino, de capoeira, foi o colégio Agroindustrial de Itapetinga tendo como incentivador o velho artista e amigo da cidade São Félix. Seus primeiros alunos foram: Edson Barbosa o macaquinha, Tolezão, Carlos Cezar e Neca. Os primeiros de muitos. Mas nem todos tinham a coragem de aprender, por que como professor de capoeira, ele tinha preocupação em ensinar toda mandinga do bater, e bater para cair. No entanto a disciplina era rígida. Não podia sair batendo por aí, mas se brigasse tinha que ser para ganhar e o que acontecia na roda, ficava na roda. Seu aquecimento era de matar. Corridas intermináveis, murros e chutes no abdômen para garantir a resistência, flexões de punho cerrado para fortalecer os socos e as mãos. Sua capoeira era de fogo. Seus alunos tinham que jogar duro e não podiam apanhar. Nas rodas que participava só entrava quem sabia trocar. Tinha que ser trocador ou então era chão.

Essa era a capoeira de Zênio, bonita e dura, singela e bruta. Talvez por isso não tenha feito escola. Não existem, na cidade de Itapetinga, alunos que deram continuidade a seus ensinamentos. Como dito por ele: “Aquele que disser que foi feito mestre por mim está mentindo. Não existe um grupo de capoeira, cujo mestre tenha sido formado por mim”.Quando ele se foi para rodar pelo mundo levou consigo sua ginga. Mas não seu encanto, ele foi o fundador, aquele que plantou a semente da resistência pelo corpo, da liberdade materializada em jogo, ginga e arte em Itapetinga. Nesta cidade Zênio e capoeira são sinônimos.

Esse é um dos motivos. O outro e o mais grave, que serve de alerta para todos, foi seu constante envolvimento com álcool, drogas e brigas pela cidade. Tornou-se figura conhecida da polícia local e fez fama nas cadeias. Não era preciso muito além do que ameaçar colocar um preso junto dele na cela para ele falar. Falar tudo. Um dos seus casos mais falados é ele ter destelhado uma cela com chutes e saltos mortais.

Zênio voltou para salvador por volta da metade da década de 90. Ultimamente foi encontrado, magro, apático, sem juízo, viciado. Longe de ser aquele jovem voador encantado, de mandinga presente e capoeira dura. O pequeno gigante foi derrotado pela miséria produzida pelo homem: as drogas.

Mas nem tudo se perdeu. Os grupos de capoeira de Itapetinga articularam, junto com algumas iniciativas privadas, o internamento do companheiro em uma clínica de reabilitação. Local de onde irá ressurgir e quem sabe, reconstruir seu legado.

Atualmente quatro grandes grupos de capoeira existem na cidade: O voo da liberdade de mestre Borracha, Raízes Quilombo de mestre Valério, Lembrança Viva de Zumbi do contra mestre Tempo e o grupo Tempo de Libertação do professor Luiz. Esses grupos, seguem mantendo firme a trajetória da resistência da capoeira na região e fortalecendo o movimento negro em Itapetinga. Apesar de não terem sido formados por Zênio, todos os quatro grupos e suas respectivas rodas espalhadas pela cidade, prestam homenagem ao velho mestre e ancestral na mandinga capoeira.

A prosa acima relatada é fruto de longos bate papos com pessoas que tiveram um bom convívio com Zênio. Edson Barbosa, o Macaquinha, foi minha primeira fonte de informação uma vez que foi ele quem, junto a seu pai São Félix, incentivaram Zênio a dar suas aulas de capoeira do Ginásio Agroindustrial. Muita prosa e risadas surgiram destes bate papos. Da capoeira vieram mestre Valério, de Itapetinga; Mestre Borracha, de Itapetinga; Mestre Acordeon, de Vitoria da Conquista. Relatos repletos de sorrisos e lágrimas, sobretudo de esperança. Salve menino voador! Salve pipoca! Salve Zênio! Axé!

Por Tales Pita,
Pós-graduando em Educação e diversidade Ético-Cultural – UESB
Historiador e Educador Social/ Por Roberto Alves

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